quarta-feira, 18 de maio de 2011

Hipocondria Institucional


A foto acima foi tirada do meu celular (por isso a baixa qualidade), dentro do restaurante universitário da faculdade onde estudo. No alto, a assinatura do Serviço de Alimentação, que têm feito outros cartazes semelhantes como "Dica do Mês". Neste, se vê duas mãos se comprimentando, e nos balões as falas: "Eu estava no banco, e você?"..."BANHEIRO". Abaixo, no vermelho, o aviso, em letras bem grandes: "Cuidado com apertos de mãos!". E depois, em letras menores: "Lave sempre as mãos, principalmente antes das refeições." Infelizmente, não é uma piada. Almoçamos muitos dias lendo este cartaz. Para mim trata-se de um sintoma de uma doença, que passei a chamar de hipocondria institucional...

A necessidade de responder à este tipo de hipocondria é um dos motivos que me levou a criar este blog. Cada vez mais tenho visto a fobia de "bactérias e germes" ser incentivada através de discursos superficiais e distorcidos.

Outro cartaz de "Dica do mês" demonizou, por exemplo, os teclados de computadores, pois neles viveriam microorganismos que poderiam até matar (nem mesmo especificaram "computadores públicos"). Outro, fala dos perigos terríveis de se mexer com gatos, também possivelmente fatais. Na televisão, diversos noticiários, de diversos canais, eventualmente fazem reportagens sobre perigos decorrentes dos "germes" que vivem em nossas casas, com lições sobre como deveríamos agir para nos proteger deles. Vou citar apenas uma reportagem do canal Bandeirantes, por questão de espaço:

O repórter está com uma moça vestida de jaleco e a dona de casa em sua cozinha. Estão dando várias "dicas" para a dona de casa, que, apesar de ter sua casa muito bem cuidada, talvez tenha se sentido vista como uma mãe desleixada no cuidado com suas crianças. A certa altura a moça de jaleco fala sobre os ovos na porta da geladeira, explicando que guardar os ovos na porta da geladeira não é adequado, porque eles podem "sofrer microfraturas com o abrir e fechar da porta, e isso possibilita a entrada dos microorganismos, que estão ao redor da entrada, e eles vão contaminar seu ovo". (Eu poderia trazer mais exemplos, mas isto, infelizmente e incoerentemente, diminuiria ainda mais o número de leitores...)

Repare, que a moça de jaleco não está falando sobre um tipo de microorganismo, está falando sobre qualquer microorganismo. Repare que ela se refere aos microorganismos que estão ao redor da entrada do ovo, e que poderiam também estar em qualquer lugar da cozinha, ou da roupa, ou mesmo do rosto da dona de casa. 

O problema aqui, como na maioria das expressões da hipocondria institucional, não é a prática recomendada, estritamente falando. Voltando ao exemplo da foto acima, não é errado lavar as mãos antes das refeições. Não estou afirmando que devemos ser mais "sujos" ou desprecavidos, longe disso. O erro destas idéias não está na microbiologia usada, que reconhece que deve-se tomar este tipo de cuidado com ovos podres. 

O erro está no discurso, no mal uso da microbiologia, que ao invés de instruir a população com conhecimentos sobre o tema, prefere simplificá-lo, tratando todos os microorganismos como patogênicos (causadores de doenças), e que nós não podemos ter contato com nenhum deles, quando na verdade necessitamos, e muito, dos microorganismos dos nossos corpos e ambientes para viver bem. 

Alguns destes "germes" podem ou não ser patogênicos, dependendo das circunstâncias e da eficiência de nosso sistema imune. Um sistema imune saudável permite ao corpo conviver muito bem com uma miríade de microorganismos diferentes, e estes por sua vez acabam por prestar serviços importantes à nossa saúde. Sempre nos preocupamos com a imunodeficiência adquirida (SIDA, na sigla em português), porém não nos questionamos muito sobre a imunodeficiência desenvolvida - quando nossos hábitos nos tornam mais fracos do que poderíamos ser.

Além disso, nestes discursos da hipocondria institucional, que outras mensagens estão sendo passadas? Vide a atual invenção dos desinfetantes de ar e seus argumentos publicitários. Claramente, estão dizendo que devemos ter medo. Medo dos germes, medos dos comprimentos dos outros, medo do teclado do computador, medo de caminhar na rua, medo de insetos, medo de aranhas, medo de cobras, medo de cães, gatos, grama, lama, terra, ar, chuva, plantas, e tudo mais que não é "civilizado". Medo de tudo que não está sobre o estrito controle da razão sanitarista, que só permite que chegue até nós seus produtos inertes e plastificados. Aliás, porque temer tanto tais "possibilidades de germes", mas não temer os carros, as fábricas poluidoras, os agrotóxicos, o plástico, o sedentarismo? Porque escolhe-se tolerar uns agentes nocivos, e não outros? 

Já eu estou dizendo que, respeitando e exercitando a capacidade de defesa do nosso organismo, assim como também respeitando a diversidade de seres que existem em nosso mundo, podemos sim viver bem, se soubermos como. Principalmente quando somos o resultado de milhões de anos de co-evolução com estes seres, e quando somos sobreviventes das precárias condições de vida das cidades da idade média (entre outras cidades) que geraram as Pestes. 

Temos um sistema imunológico capaz de se tornar muito robusto, e isto de certo modo graças ao sacrifício involuntário de muitos antepassados. Porém estamos jogando esta dádiva fora. Esta dádiva necessita de certos estímulos nos momentos adequados para poder se desenvolver (além de alimentação e hábitos sadios), e quando fazemos o máximo para evitar qualquer espirro das crianças, qualquer sujeira em suas mãos, estamos na verdade podando-lhes qualidade de vida futura. Isso é acorrentá-las à maiores necessidades médicas e farmacêuticas pelas quais alguns ficarão muito felizes em nos cobrar dinheiro em troca.

Por outro lado, nossos corpos não possuem qualquer mecanismo de defesa contra as moléculas liberadas dos plásticos, dos agrotóxicos, ou contra os hábitos sedentários e a poluição do ar. Estes males, que, vergonhosamente, foram criados por nós mesmos, deveríamos temer muito mais.

Concluindo, uma última questão. O medo do mundo natural só nos domina quando não há conhecimento, quando não compreendemos aquilo que talvez seja bom evitar. E esta dominação do medo é em si muito mais perigosa que os próprios objetos temidos, quaisquer que sejam eles. Ela pode nos impedir de reagir adequadamente ao perigo e nos incitar ao pânico. Pensando nisso estou preparando algumas postagens sobre coisas que tememos no mundo natural, para complementar aquelas sobre plantas medicinais: cobras, mosquitos, bactérias, fungos, vírus, vermes, plantas venenosas, sapos, ratos, onças (hehe)... Afinal, nosso sistema imune começa na cabeça.

7 comentários:

  1. texto perfeito, Felipe. tenho achado cada vez mais que essa obsessão por saúde pode se tornar nosso grande tiro na culatra. por um lado criamos nas cidades um ambiente perfeito pra proliferação de vírus e bactérias, por outro extinguimos os anti-corpos de nossos organismos.

    observação: queria saber a opinião de alguém que entenda do assunto, mas me parece que nascimentos prematuros são cada vez mais comuns... e pelo jeito não é só achismo: http://bit.ly/ieTxnZ
    as causas mais comuns, nesse mesmo texto cita elas, são também consequência da civilização. outro mal que, imagino, pode nos levar a uma crise. mas não acredito que aconteceria muito em breve... talvez umas poucas centenas de anos se as coisas continuarem nesse caminho.

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  2. Caramba, que absurdo essa campanha!
    Vc sabe dizer aonde mais esses cartazes estao sendo divulgados? (todas as unidades da USP, outras universidades, etc ...)

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  3. Muito bom o texto. A hipocondria é a crença de que se está doente mesmo estando-se são. Para além disso, o problema é que há um real adoecimento: a transmissão de uma neurose, uma fobia da vida: uma zoefobia, ao mesmo tempo em que as doenças reais estão cada vez mais presentes também.

    Ver doença onde há apenas processos naturais relativamente saudáveis é uma coisa. Combater os "elementos estranhos" que invadem e ameaçam a civilização (como no filme "Wall-e") é outra coisa. Esta campanha está propagando uma sensação de desconfiança do outro, que pode até comprometer certos hábitos de demonstração de afeto. Hipocondríacos não têm necessariamente medo da doença, mas a tratam como algo natural em si mesmos: "Sou doente, tenho que lavar as mãos". Elas "cultuam" a doença, de certo modo. Falam de doença o tempo todo. Têm uma certa obsessão por isso. A campanha estimula a desconfiança do outro. É uma coisa mais social do que psicológica. Ela visa mudança de hábitos em vista da "saúde" biológica, mas não da saúde social, por exemplo.

    É preciso notar que a mesma civilização da "higienofilia" é também a mais propícia a proliferação de micro-organismos que propagam doenças. A principal razão é a domesticação, criando um contato entre seres diferentes ou um acúmulo de seres da mesma espécie que extrapola os limites naturais, e que por sua vez propicia a transmissão e o desenvolvimento de doenças que ficariam naturalmente limitadas. Estas são combatidas com antibióticos, piorando a situação. Outra é que a civilização quebrou as barreiras naturais de contenção geográfica dos micro-organismos com o transporte de humanos pelo globo (a partir do comércio), e as bactérias e vírus ganharam muito com isso. Etc...

    O medo das condições naturais é provocado pela civilização, assim como a sensação de segurança nas condições sanitárias que ela considera "adequadas". A questão é que não se prioriza o discernimento entre o que é e o que não é limpo, saudável, seguro... A desconfiança é geral. Como ouvi numa música: não há tempo para discriminar, aplique o mesmo procedimento a todos. Esta é a maior doença de todas.

    Outra nota: aquela propaganda da Veja que diz: "Xô neura", está defendendo o seguinte: "Menos tempo na limpeza, mais tempo para você". Isso também é um problema, relacionado à eficiência, o que também está pressuposto na campanha que você citou. É uma forma de dizer: "Evite acidentes". Porém, essa tentativa de fazer as pessoas seguirem procedimentos de modo cada vez mais regulado tende ao fracasso numa sociedade como a nossa.

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  4. Por outro lado, só para completar, esse medo da morte e da doença (pois uma coisa se relaciona sempre à outra), e o modo como a vemos em todo lugar e nos relacionamos de modo ao mesmo tempo obsessivo e ignorante, é uma questão importante, que está presente no seu texto.

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  5. Maíra Leme da Silva19 de maio de 2011 às 12:37

    Muito bom mesmo esse texto, eu mesma não conhecia o lado "bom" de as vezes entrarmos em contato com certos microorganismos, e que não são qualquer microorganismos que transmitem doenças. Parabéns.

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  6. Obrigado a todos pelos comentários. Sempre tenho que me limitar à certas questões dentro do tema, com as participações conseguimos desenvolver mais e de modo mais interessante.

    Pablo, muito importante esta questão, eu não tinha conhecimento ainda desta chaamda "transição epidemiológica perinatal". Existem certas questões ecológicas que podem levar uma espécie a alterar seu tempo gestacional, e isto têm a ver inclusive com processos que marcaram a evolução hominídea. Não tenho muito tempo agora para falar sobre isso, mas caso houver interesse posso comentar. Quanto à este processo que está se observando agora, entretanto, certamente trata-se de algo completamente diferente, em virtude do ritmo em que está acontecendo e da situação humana atual. Me faz lembrar dos filmes "Agressão ao homem - Nosso futuro roubado" e "Filhos da Esperança". O primeiro é um documentário sobre o efeito dos plásticos na fertilidade masculina, o segundo uma ficção sobre um mundo onde os bebês pararam de nascer...

    Sandro, não sei se existem outros destes cartazes em outros campi da Usp. Os que estão no meu campus foram elaborados pela adminstração local mesmo.

    Janos, obrigado novamente pela participação! Sobre a morte, de fato precisamos desenvolver uma visão cultural mais madura sobre ela. Venho pensando a um tempo em escrever algo nesse sentido. Você conhece alguma referência?

    Maíra, que bom que pude ajudar. Sensação de missão comprida, sabendo que a mensagem está chegando. Inclusive penso que talvez possa despensar as aspas, já que os microorganismos (de modo geral) têm uma função boa sim, no sentido profundo da palavra. De fato, a grande maioria dos microorganismos com os quais podemos ter contato cotidianamente não é patogênica - a menos que alguém tenha uma imunodeficiência desenvolvida. Infelizmente a hipocondria institucional trata tudo isso como se fossemos todos imunodeficientes. Se seguirmos seus conselhos a risca logo seremos de fato (e não duvido que a culpa poderá cair toda no HIV).

    Estes dias ouvi a seguinte história de um amigo: quando ele era ainda bebê, "tinha" alergia à poeira. Sua mãe varria a casa todos os dias, e dava-lha banhos quentes cheios de cuidados para eu não tomar qualquer friagem, pois sempre que isso ocorria ele reagia. O médico local, entretanto, o salvou (nem sempre eles atuam com tal maturidade). Disse que a mãe poderia varrer a casa menos vezes (uma vez por semana, por exemplo) e que podia, e devia, dar banhos frios. E dizendo isso ele mesmo pegou o bebê e o colocou sobre a água "fria" da torneira do consultório. A mãe seguiu os conselhos. Logo a "alergia" sumiu. E penso que ele inclusive deve ser capaz de tomar banhos frios mais facilmente do que eu... rsrs.

    Abraços,
    Felipe

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  7. À propósito, este texto foi um que pensei bastante antes de publicar. Corro o risco de ser entendido como "sujão". Não defendo a falta de condições sanitárias adequadas, por exemplo. Espero que tenha ficado claro que estou atacando a dominação do medo sobre nossas mentes e atitudes, para que não sejamos mais arrastados para um beco sem saída imunológico (e farmacêutico).

    Sobre isso, o Janos postou uma vez uma pequena história (em vídeo de quadrinhos) sobre essa questão em seu blog. Vale a pena: http://umanovacultura.blogspot.com/2011/04/produzimos-doenca-para-vender-o-remedio.html

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