terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os três irmãos

Eles eram três. E viviam em Paz.

Não faltava terra boa onde plantar, não faltavam boas matas onde caçar. A água corria pura, os peixes não faltavam, e os animais não lhes eram temidos. O fogo lhes acalentava os espíritos à noite, e temperava os alimentos. As estações corriam suaves, sem que faltassem provisões, sem que faltasse calor, sem que faltasse alegria e saúde. (...)


Eles plantavam, caçavam, e pescavam em unidade. Comiam, bebiam, e habitavam em comunhão, sem que nenhum necessitasse de ter mais do que o que lhe era devido, e tampouco desejasse consumir qualquer excesso. Os alimentos, repartidos, se tornavam ainda mais saborosos.

As risadas eram constantes, e todos sabiam entoar belas músicas, como igualmente sabiam apreciar belas histórias. Um deles era mais velho, e sendo mais sábio, era quem lhes contava miríades de histórias, todas as noites, à luz do luar ou da fogueira. Ensinava aos outros dois tudo quanto podia, sobre as plantas, sobre a terra, sobre os animais. Os pássaros e rios puros preenchiam suas histórias de amor, de aventuras, de morte e de deslumbramento.

Narrava ele sobre o que se sucedera antes do início. Sobre o que se sucederia no final. Sobre outras formas humanas a entender a existência. Sobre como seus antepassados aprenderam a respeitar a vida. Histórias que abriam os olhos às aventuras que saciam a mente e que na consciência resplandecem. Histórias sem finais trágicos, tampouco sem finais felizes. Histórias que apenas continuavam, eternamente, como a história da própria vida.

Até que, certo dia, sem despedidas ou avisos, o mais velho simplesmente deixou-os. E deixou-os no mistério incompreensível do pesar e da saudade. Nos mistérios das muitas dúvidas e da única certeza que agora enxergavam. Sentiam-se solitários, muito embora a vida continuasse radiante ao redor deles.

Tristes, agora as noites seguiam-se silenciosas. Reticentes, e em mórbida preguiça, os dois deixaram que o silêncio e a dor dominassem suas vidas. Fraquejaram. E então não se ouviam mais canções suaves durante as colheitas. Não se abriam sorrisos durante as refeições. Logo, esqueciam-se do prazer que eram suas próprias companhias.

Passaram-se mais algumas luas e mais alguns invernos, e, esquecidas as histórias de todas as noites e todas as suas lições, os dois permitiram, em suas fraquezas, que a ganância lhes viesse à alma. Subitamente, as mesmas quantidades de provisões não lhes bastavam mais. A fome da mente não se saciava. Queriam mais.

E destruíram o próprio lar buscando mais alimento. Baixaram as arvores, secaram os rios, gastaram o solo.

Agora, suas silenciosas e embrutecidas companhias eram ainda mais detestáveis.

Assim, tendo logo percebido que o mundo era mais vasto do que aquilo que sempre conheceram, partiram a ele. Separados na alma, romperam seus caminhos, explorando as terras e os rios em direções opostas. Solitariamente, aprenderam novas técnicas, novas idéias, novas histórias. 

Conheceram novas plantas, novos animais, e novas ferramentas.

Porém, sempre acreditando que ainda lhes faltava algo, levaram também destruição a estes novos horizontes. Seria o terceiro companheiro, perdido no fundo de suas consciências, capaz de saciar suas ganâncias? De nada mais sabiam eles, tendo esquecido até quem eram seus irmãos.

Faltava-lhes algo, sim, de fato. Porém, passados mais séculos desta procura, antes que este algo lhes topasse à vista, o mundo findou. Todas as fronteiras conhecidas, todos os mares dominados, e os rios navegados, os dois encontraram-se novamente.

Porém não se reconheciam mais, pois haviam passados tantos dias desde sua separação que ambos não mais contavam as luas, e não mais respeitavam as estações. E agora, embora ainda em muito se assemelhassem, muito diferentes haviam se tornado. Tornaram-se fisicamente grandes, descomunalmente alimentados pela cobiça. Estranharam-se.

Desejavam, ainda, cada um procurar o algo que lhes faltava na outra metade do mundo. Aquelas metades, agora determinadas como território de um ou de outro, eram os únicos terrenos ainda a explorar. E os dois, sem conhecerem mais a beleza das canções, dos diálogos, da amizade, puseram-se a lutar, ferozmente, pelas conquistas do adversário.

Desenvolveram não mais ferramentas, mas armas. Armas cada dia mais truculentas, maiores, mais fortes, mais perigosas. Dos dois lados, a terra se tornava cada vez mais enferma, suporte de toda a ganância. Ganância agora se tornando luta, se tornando guerra, maldizer, e ódio.

O intelecto dos dois se desenvolvia, crescendo com a guerra. As formas de ataque tornavam-se mais sofisticadas, e as armas, mais autônomas. Campos de batalha se tornaram grandes armadilhas, e a terra esburacava-se debaixo das ofensas, não mais em palavrões, mas agora em explosões e rajadas.

Em conjunto e em conflito, levaram seus gritos de guerra a todos os cantos dos dois territórios, a todas as áreas do mundo. Campos alheios e desconhecidos se tornavam campos de guerra para então se tornarem desertos esburacados. Assim, cada um conheceu, finalmente, e em meio a gritos de dor e de ódio, o mundo inteiro.

E o tempo correu. O combate se prolongando eternamente. Ambos, inexoravelmente, esqueceram-se por que lutavam, o que procuravam, e por que expandir seus territórios. Tendo conhecido tudo, não encontraram o que procuravam e tampouco se importaram, visto já terem a muito esquecido o objetivo inicial da guerra. Agora, nas mentes, existia apenas a idéia de destruir ao outro. A terra abaixo deles não lhes importava mais, e seu ódio pelo inimigo se refletia em um ódio irracional pelo próprio solo, consumido à exaustão.

Faltando-lhes a terra boa de onde tirar a comida, tornaram-se logo ainda mais gananciosos e hostis. Racionalmente, mais cruéis. Até que, vendo que ainda lhes faltava algo, pensaram que poderia ser o adversário este algo que lhes faltava: não como alimento, não como companhia, mas para sua serventia, para que pudessem descansar seus gigantismos mórbidos sobre a face alheia.

Os planos de guerra, em incrível e assustadora sincronicidade, se alteraram. Subitamente, não se buscava mais o fim do inimigo, mas sim sua escravidão. Destino esse que seria a vitória suprema sobre o ser odiado, pois pior que a morte, para eles, era se ter tirada a liberdade de destruir. E o indestrutível inimigo, incansável, não mais precisaria ser aniquilado, mas apenas acorrentado e vigiado, sem que fosse capaz de armar novas emboscadas, sem que fosse capaz de empunhar nova arma.


Pouco importa quem obteve, por fim, a primeira vitória. Finalmente, um fora subjugado, acorrentado, e arrastado indefeso ao quartel inimigo. Lá, o outro não mais se importava com as terras alheias ressecadas e agora inférteis. Tinha novos braços para o trabalho, e seu escravo agora labutaria debaixo de sol e chuva pelos dois.

Logo que os trabalhos pesados começaram, o derrotado se renunciou à sua fraqueza, entregando-se à labuta sem reflexão e sem rebeldia. Não por temer o chicote ou o ódio de seu vencedor, e sim apenas por seu próprio comodismo. Trabalhava pelos dois, sempre suprindo a fome descontrolada daquele que apenas o observava.

O vencedor então se deixou engordar, talvez tentando rivalizar com as montanhas ou a própria terra em tamanho e largura. Tornou-se um grande estorvo, que logo perdeu o interesse por qualquer movimento – onde perdia suas calorias – até mesmo o movimento do chicote.

O derrotado, ao contrário, emagreceu e definhou, tornando-se tão raquítico que se assemelhava a um cadáver.  Já cansado e sem mais sentir cômoda sua condição de quase verme, viu suas rédeas enfraquecerem, e finalmente, em um golpe súbito, revoltou-se. Sem dificuldade, tornava-se agora vitorioso. As correntes trocaram de pés e mãos, as belas vestimentas trocaram de corpo.

Porém, o novo dominador sabia dos erros que seu inimigo cometera, e não os repetiria. Controlou sua própria alimentação, bem como a alimentação de seu novo escravo. O novo trabalhador logo recuperou um corpo de proporções respeitáveis, e assim se manteve. Seu dominador agora o tratava com cuidado, aparentemente até com respeito. Vigiava-o distante a atentamente, e sempre se mantendo em forma e em saúde. Criou sistemas complicados que restringissem o movimento, a saúde e a alimentação do derrotado. Com o tempo, restringiu até sua maneira de pensar, tornando-a quieta, passiva, conformada, esquecida do passado de guerras.

De forma que logo, prendendo e vigiando o dominado agora existiam as correntes mais fortes que jamais puderam inventar: a mentira e a ilusão.

Com a nova “paz”, o vencedor finalmente teve um período de fartura e de algo que chamava de glória. Logo desenvolveu novos e mais potentes mecanismos para exaurir a terra, pois sua ganância continuava insaciável, e ele pensava ser capaz de se alimentar ainda mais. Sempre com seu rigor técnico, seu consumo auto-vigiado e sua cegueira voraz.

De forma que, com as novas idéias e ações da exploração, o mundo todo se tornava deserto e esgoto a passos rápidos.


Finalmente, o mundo sucumbiu à exploração.

As terras tremeram revoltadas. Ondas se ergueram, animais e doenças se descontrolaram. O mundo morria.

E as convulsões logo sacudiram o corpo e a mente do derrotado. Este, mais próximo do ambiente inóspito, assustado nos campos de trabalho forçado, viu as ilusões e mentiras ruírem junto com os terremotos. Percebendo o engano em que até então vivia, o ódio voltou ao seu coração, e sem dificuldade voltou a se dedicar à velha guerra.

As muralhas e defesas rigorosas do dominador também subitamente sucumbiram à revolta da terra. 
O dominado, em oportuno esforço, avançou à luta, cheio do desejo ambíguo de dominar e destruir seu inimigo.

Chuvas diluvianas chegaram. Logo, nada mais havia além de lama e ruínas. E ali, em meio ao lamaçal, o ódio combatia a si mesmo. Tendo tudo ruído, não possuíam mais armas, além das próprias mãos, tampouco mais defesas, além da própria pele. A princípio julgaram-se capazes de socar-se até a morte, até que, em meio ao sangue, passaram a se estrangular. Rolavam pela lama, envolvendo-se pela lama, não mais distinguindo suas próprias feições ou seus objetivos.

Finalmente percebendo-se como imortais, sobre a terra que tremia buscaram imobilizar um ao outro. Não mais viam a morte como uma certeza. Fatigados como já estavam de tanto conflito, a mesma seria uma benção. Ainda assim, cada um ainda buscava, irracionalmente, a vitória – enquanto a morte se mantinha perante eles como sempre esteve: distante.  

Sem que percebessem, prenderam-se suas pernas. Ataram-se seus braços. E em meio à lama, imóveis, enxergaram-se finalmente olho no olho, através da lama.

E então, refletido nos olhos do inimigo, serão capazes de enxergar aquilo que sempre procuraram?

Reconhecer-se-ão, afinal, e se lembrarão de que são irmãos, de que são humanos, de que são homem e mulher? E de que um dia já foram amigos, companheiros?

Lembrar-se-ão do irmão mais velho, já a muito esquecido? Das histórias, perdidas num passado distante? Pode a terra e a lama curar-lhes a ganância, a ambição, a estupidez? Pode a chuva lhes fazer sentir a harmonia novamente?

São eles capazes de pedir trégua, soltarem-se e se colocarem de pé, em paz? E então, observando todo o colapso que o conflito produziu, salvarem a si e ao que mais puderem do mundo?

Ou continuarão eles cegos, imóveis, presos pela ganância e pelo ódio, até que a própria Terra finalmente se abra abaixo deles e os devore, como eles devoraram a ela?


Dentro de seus próprios olhares, encontrarão finalmente o irmão distante, que jamais esteve em outro lugar que não dentro de cada um?

Em silencio, pois não mais o queriam ouvir, assim como não mais queriam ouvir o som dos pássaros, o correr das águas, e o vento nas árvores. E não mais davam atenção às histórias de cada luar.

E agora, em meio ao colapso e ao conflito em auge, perecerão ou serão finalmente capazes de ouvir novamente a voz da Terra?

7 comentários:

  1. Este texto eu havia escrito há muito tempo, e sempre quis revisá-lo para publicar. Não sei se, se tivesse escrito hoje, ele estaria diferente. Recentemente um amigo, Thales Gaspari, escreveu outro conto de teor muito parecido e colocou no blog dele (não o blog de tiras, o outro):

    http://sdbpoesia.blogspot.com/2011/10/sangue-de-dragao.html

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    1. Hello, Felipe. http://sdbpoesia.blogspot.com/ is set to "private" now, so anyone who hasn't been granted access cannot read it.

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    2. Ohhh, bollocks! Well, I'll talk to Thales, the author, to have him send you his tale. Thanks for noticing, John!

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  2. Felipe,

    Eu gostei da sua metáfora. Ficou muito bom o modo como você transpôs elementos de uma teoria para uma linguagem mitológica.

    Meu comentário é sobre algo pressuposto no seu conto: a humanidade vivia bem antigamente, então acontece algo que de algum modo leva à divisão e à produção da civilização, com todos os seus males. Este evento traumático, no caso, seria a ausência de uma referência, ou pelo menos uma invisibilização, um esquecimento. Acho que faz sentido, mas não é assim que eu retrataria o que aconteceu conosco. Na sua história, não fica claro porquê a referência se perdeu, se estava tudo indo tão bem. Não aparece a responsabilidade dos irmãos sobre isso.

    Hannah Arendt diz que enquanto os liberais tendem a ver o futuro com demasiado otimismo, julgando que nossa história se direciona para níveis mais elevados de liberdade, os conservadores tendem a ver o passado com demasiado romantismo, julgando que este mesmo processo de modernização representa a decadência da civilização e a constante ameaça de perda de uma liberdade que foi conquistada a duras penas em tempos passados. Ambos acabam se igualando em suas propostas em defesa da liberdade quando colocamos em questão a própria civilização.

    Há uma posição alternativa à falsa oposição entre liberais e conservadores. Eu a resumiria do seguinte modo: O futuro da humanidade não está necessariamente atrelado ao futuro da civilização. Isto significa que pouco importa os bens ou os males que a civilização produz, o futuro da humanidade está aberto às possibilidades não-civilizadas. Não basta substituir o que tínhamos antes por algo que cumpra a mesma função na civilização. As condições do passado se perderam para sempre,e nesse sentido as coisas não vão melhorar. Nós precisamos recomeçar e redefinir, mas não a qualquer custo de qualquer maneira. Não pode ser um recomeço a partir da mesma mentalidade. Não pode ser uma redefinição que valoriza os efeitos positivos do progresso enquanto atenua ou desvaloriza os efeitos negativos deste mesmo progresso.

    Sua ilustração do problema serve para demonstrar que tudo começa na ganância, e que a estrutura de poder pode mudar para de forma sem que haja qualquer aumento real da liberdade. Eu apenas mudaria uma coisa: não representaria o passado com tanta paixão. Qualquer pessoa que se dê ao trabalho de ler provavelmente será sensível o bastante para perceber que estamos numa condição deprimente.

    "O que chamamos de poder do Homem sobre a Natureza se revela como um poder exercido por alguns homens sobre outros, com a Natureza como instrumento" - C. S. Lewis

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  3. Olá Janos!

    Comentei levemente com você por email (inconclusivamente) sobre a postagem, mas ainda vale deixar algo aqui publicado sobre...

    Realmente, não pretendi dar uma explicação sobre porque a perda de referência ocorria. Na época que escrevi nem teria como palpitar sobre isso (como talvez tenha feito o Thales no Sangue do Dragão), e o intuito do conto era mais mesmo mostrar os revezamentos das formas de opressão. Acho que não temos resposta sobre o porque da perda de referência ainda - mesmo indo além, como fez o Thales no conto citado. Ele mostra mais objetivamente a culpa humana, porém não explica porque alguém começou a se rebelar, se tudo ia tão bem.

    De todo modo, no fim do conto eu remeti de volta a culpa aos dois, ainda que eles (os personagens) tenham sempre se recusado a ver sua culpa nisso.

    A linguagem que imprimia a perfeição no passado era mais para dar um tom mítico do que verídico (como ocorre em todo o texto... afinal, os personagens também não são pessoas individuais, são arquétipos, e por isso imortais). E creio que concordo com os outros pontos que você levantou, mas acho que ainda precisamos conversar mais nesses termos.

    Abraço! E obrigado pela colaboração, sempre enriquecendo o blog!

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  4. Olá, Kana!

    Puxa, me desculpe estar comentando o texto só agora. Até tentei fazer isso antes, mas não deu mesmo.

    Eu gostei da idéia, parabéns. Sem entrar em maiores considerações sobre aspectos estilísticos (até porque não sou crítico de arte, haha), me parece um texto que cumpre bem a sua função e põe em discusão o assunto de forma clara, através de uma boa metáfora.

    Concordo com o que o Janos comentou, sobre a perda de referência e isso de romantizar excessivamente o passado... mas também acho uma questão difícil de explorar em uma narrativa dessas (e talvez nem fosse a sua pretensão, é claro). Na verdade não sei nem se eu tenho como discutir com bons argumentos quanto à isso, embora meu texto também toque no assunto; acho uma questão complicada. Não sei nem mesmo se alguém teria uma resposta clara para esta perda de referência, embora com certeza se trate de um assunto realmente importante dentro da discusão.

    Outra coisa que me chamou atenção é sem dúvida o quanto de semelhança - e diferenças - os nossos escrito tem entre si! Mesmo sem conhecer seu texto eu escolhi o mesmo caminho e até muitos recursos iguais (as histórias contadas no começo, a guerra insana seguinte). Isso é bem legal! Podemos conversar melhor sobre isso depois.

    Bem, é isso. Eu acho que escrever contos é uma forma muito legal de transmitir este tipo de conteúdo. Devíamos pensar nisso e tentar continuar escrevendo. É, claro, tem todas as suas limitações e tal (como qualquer meio), mas torna a compreenssão mais assimilável e interessante em um primeiro momento...

    Continue escrevendo!
    e aquele abraço

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