sexta-feira, 24 de junho de 2016

Sociedade do Medo - A Prisão Confortável (Parte 3)


 Uma das ilustrações de Gustavo Doré para o poema de Edgar Allan Poe, "O Corvo"

Individualmente, o medo pode nos proteger de muitas coisas – mas há um perigo que fica bem no ponto cego do medo: nós mesmos. Se não mediado pela razão, o medo pode dominar uma pessoa, ou mesmo uma população inteira e sua cultura. Tal cenário é ideal para aqueles que estão no poder: ao invés deles temerem a nós, eles nos fazem temer uns aos outros até a profunda inação.

Continuo aqui o diálogo iniciado nas partes 1 e 2 da Sociedade do Medo.

Parte 3 - A Prisão Confortável

"Eu não quero morrer sem nenhuma cicatriz"
(Chuck Palahniuk, autor de "Clube da Luta")
Fonte da imagem: SpiritualCleansing

Falsa Segurança 

Na parte 2, discuti levemente o mote do “potencial estuprador”. Retomemos esse mote. A pergunta que faço agora é: porque parar aí? Se todo homem é um potencial vilão, porque se limitar neles ao apontar riscos, reais, “potenciais” ou aumentados? Afinal, as "estatísticas" poderão igualmente defender, com um rigor muito maior e mais tenebroso, que muitos outros “x são um potencial y”: Todo carro é um potencial acidente, toda rua um potencial atropelamento, todo cachorro uma potencial mordida (raivosa!), todo passarinho na janela é um potencial transmissor de doenças (mortais!), todo passeio na cidade um potencial assalto (ou sequestro!), todo banho de mar é um potencial afogamento (ou mordida de tubarão!). Toda prática de esporte uma potencial cãibra, um potencial infarte, ou uma potencial fratura óssea. Todo ser vivo um potencial patógeno cruel. Toda comida nova um potencial veneno. 

Talvez você imagine que eu estou exagerando, mas estou usando apenas exemplos que já vi alguém me dizer pessoalmente. Todos nós temos, em algum nível, alguma paranoia. Por exemplo, você acharia exagero se eu dissesse que todo homem negro na rua é um potencial assaltante, que todo parceiro sexual masculino é um potencial agressor, que toda discussão acalorada é uma potencial agressão? Frases como estas são repetidas todos os dias, e deixamos de perceber que são nada mais que temores desconfiados da vida. São frases de pessoas que estão completamente desconectadas da realidade e entregues ao medo (ou querendo te desconectar, te cativar com o medo).

"O sonho da razão produz monstros" de Goya

E exemplos não faltam de pessoas mergulhando fundo, cada vez mais, em medos e paranoias. Usam tais desculpas para se fechar num mundo aparentemente seguro – mas que não vai além de ser apenas confortável (pois, claro, acidentes sempre vêm de perigos que não percebemos - caso contrário não são acidentes). Existem venenos em praticamente todos os produtos químicos que precisamos manusear diariamente, ou riscos de mutilação em qualquer construção civil ocorrendo na vizinhança. Doenças podem viajar pelo ar, pelos sapatos e roupas, ou aguardar por longos períodos o momento certo de ativação. Mesmo a quina mais inofensiva de uma mesa de jantar pode deixar alguém tetraplégico. E como disse na primeira parte desta série, não há sistema de proteção ou segurança incapaz de sofrer falhas.

Porém são nas pequenas fatalidades e percalços do dia-a-dia que nos tornamos mais fortes para resistir aos grandes problemas. É no tropeção que damos correndo pela rua que aprendemos a cair da melhor maneira possível. É na exposição aos patógenos do mundo que nossos bebês desenvolvem seus sistemas imunológicos corretamente (caso contrário, desenvolvem alergias e outras complicações). São nas pequenas desavenças que temos com nossas pessoas amadas, todos os dias, que aprendemos a dialogar e a amar verdadeiramente.

Isso é especialmente crucial quando percebemos que boa parte desse temido mundo, se encarado corajosamente, tem certamente mais coisas boas a oferecer do que perigos dos quais evitar. Se na nossa comunidade se encontram assassinos, ladrões, e estupradores, também se encontram médicos, salva-vidas, bombeiros, amigos, companheiros, filantropos, lideres espirituais, pacificadores, e uma miríade de outras pessoas que fazem o mundo um lugar melhor com suas ações. E em qualquer esquina (embora não em qualquer horário), a chance de você encontrar com um simples trabalhador querendo voltar para o seu lar é muito maior do que alguém com más intenções.

O medo exacerbado, como podem ver, é nada mais que uma ferramenta perfeita para separar, isolar, e controlar as pessoas. Nós deveríamos temer – e combater - apenas as pessoas que querem nos acovardar deste modo tão paralisante perante o mundo.

Real Totalitarismo
  
    
A solução que a cultura do medo prega para a crise de segurança que ela inevitavelmente cria (por vezes sequer uma crise real) é o aumento do controle e da proteção estatal (e, portanto, do poder dos governantes). Mais investimento em segurança, mais câmeras de vigilância, mais policiais, mais truculência, menos privacidade (apesar de que nossa intimidade já esteja morrendo de qualquer modo), menos direitos civis, menos liberdade de expressão.

É bastante conhecido na ciência política que políticos criam inimigos imaginários, ou aumentam/distorcem inimigos reais, para unir o povo a seu favor e contra o que quer que seja o “mal” do momento. É a desculpa perfeita para restrição de liberdades, políticas de austeridade, opressão policial, prisão de dissidentes, e incentivar que cidadãos apontem os dedos para qualquer “atividade suspeita” dos vizinhos. É o reinado do medo e da paranoia no seu auge. Nós no Brasil não estamos lá ainda, mas sem dúvida estamos nesse rumo (independentemente do nome do presidente, com o perdão do trocadilho).

Nós não estamos lá, mas já estivemos lá, duas vezes, décadas atrás. Os militares temiam (ou diziam temer) um regime comunista (o grande bicho papão, para eles). Meio século antes Vargas inventou uma conspiração também apenas para dissolver as eleições. No plano internacional, Hitler incendiou o parlamento, no ato mais famoso do tipo, seguindo um padrão muito repetido ao redor do globo na história recente. É quase como se existisse um "Manual de como começar uma ditadura", pois praticamente todo ditador (ou aspirante a ditador) usou o medo, ou "ameaça de golpe", para tomar ou se firmar no poder.

Esse risco é ainda maior considerando que vivemos em um mundo onde existem facções terroristas radicais reais, fomentando estas políticas destas posturas ditatoriais através de seus atos - os governantes sequer precisam criar falsos inimigos. Fomos lembrados dessa realidade pelo massacre recente em Orlando, fruto da homofobia baseada em fundamentalismo islâmico. Neste caso em particular, não havendo uma ligação formal entre o atirador e entidades como o EI (Estado Islâmico), a mídia focou mais na questão da homofobia ou do controle de armas. O mesmo não foi verdade nos casos de ataques à França do ano passado, onde as facções terroristas estavam diretamente envolvidas e, no caso do ataque de Novembro, atacaram civis indiscriminadamente (o ataque do começo do ano passado foi focado em cartunistas... lembram-se desse?).

E que resultado sucedeu, na França de 2015 ou em outros casos antes? O “terror”, claro, ganhou – pois os franceses se curvaram ao medo, como fez os EUA após o 11 de Setembro. Novas leis foram aprovadas de “combate ao terrorismo”, e sabemos já que apenas um dia após a aprovação de “leis mais duras” contra organizações terroristas na França, grupos de ambientalistas (sequer radicais, apenas ambientalistas) foram presos. As leis criadas, no papel, poderiam parecer ótimas, considerando-se a ameaça "terrorista". Mas aparentemente suas palavras "não eram específicas o suficiente", de modo a ajudar certas “agendas” de outros grupos políticos.

Não é a primeira vez que algo do tipo acontece, e temo que não será a última: toda vez que um Estado cria facilidades para prender “preventivamente” alguém (ou por conta de crimes subjetivos, como ofensas pessoais), esse Estado sempre vai usar essa nova facilidade para silenciar discursos incômodos (mesmo que não agora, mas nas mãos do governante seguinte). Sempre, ainda que não imediatamente. Pois a liberdade e a confiança que estamos dando a um governante atual (que pode muito bem merecer isso), também estará nas mãos de seu sucessor – seja ele quem for. Do ponto de vista de um poder estatal, interessado primeiramente em se manter onde está, todo discurso visando derrubá-lo é tido como crime com imensa facilidade.


Como romper a paranoia, o medo cíclico que nos prende enquanto indivíduos e nos enfraquece enquanto comunidade? Ainda que não pretenda dar uma solução que sirva a todos, tentarei dar meus conselhos para a construção de outra cultura na parte final desta série, aqui.

Um comentário:

  1. Ainda no tópico de medo e liberdade, é crucial lembrar sobre o possível efeito do medo na liberdade de expressão.
    Tempos atrás, a notícia recorrente era que pessoas estavam sendo sumariamente julgadas no "tribunal internet" e suas vidas destruídas por causa de um comentário (muitas vezes mal interpretado).
    A palestra da Monica Lewinsky (sim, essa mesma) sobre o assunto no TED mostra exemplos desse tipo de caso: https://www.ted.com/talks/monica_lewinsky_the_price_of_shame?language=pt-br

    Porém atualmente vemos um movimento um pouco diferente, onde não são ofensas que estão sendo caçadas, mas opiniões tomadas como ofensas.

    Eu vou abordar isso com calma em um futuro texto (possívelmente talvez se torne uma futura série), mas deixo aqui alguns outros links. Particularmente preocupantes são as atuais mudanças nas políticas do Youtube e Facebook, e o que estas companhias estão considerando "discurso de ódio" ou "conteúdo ofensivo". E tais mudanças estão apenas seguindo propostas já levadas a cabo em algumas universidades. Aparentemente, o bom debate está perdendo, já a alguns anos, a luta contra o medo "da oposição do mal".

    Vídeo do Pirula sobre o assunto:
    https://www.youtube.com/watch?v=AhTFIR6TLs8

    "Does freedom of speech offend you?"
    https://www.youtube.com/watch?v=9vVohGWhMWs

    https://www.youtube.com/watch?v=i_4-BqSIUD8

    https://www.youtube.com/channel/UC2EJ06CwmdeOKfwwNQLWkow

    ResponderExcluir