domingo, 28 de agosto de 2011

Crescimento populacional humano: Anomalia cultural

A "curva J" do histórico populacional humano.
Não deixem de entrar no link acima para ver o tamanho original e ler as legendas (em inglês).

Nascemos e crescemos em um mundo superpovoado. Tendemos a pensar que o mundo continuará assim, o que é natural, pois tendemos a "naturalizar" tudo aquilo que estamos acostumado a ver desde que nascemos. Mas este mundo superpovoado é tão efêmero quanto um sonho, e a idéia que esse sonho pode continuar está embasada em crenças, não em fatos. Diversos autores chegaram a enxergar a situação atual de nossa espécie como um câncer adoecendo o planeta. E estamos adoecendo a nós mesmos também no processo. De forma muito pior do que qualquer câncer seria capaz.

A percepção de que o crescimento populacional humano é um problema não é nada nova. Infelizmente, os críticos desse processo nunca estiveram em condições políticas e materiais de reverter ou frear este crescimento, e foram constantemente considerados como alarmistas ou caluniadores, principalmente por aqueles que tendem a ver a dominação humana sobre os ecossistemas como algo "natural", ou por aqueles que tendem a ver o desenvolvimento tecnológico como o recurso infinito capaz de solucionar qualquer problema que estejamos criando. Estas duas visões de mundo são ilusões civilizadas sem base lógica alguma.

Malthus foi um destes alarmistas mais rechaçados. E de fato ele estava errado: podemos aumentar nossa produção de alimentos de modo a acompanhar o crescimento populacional. Porém, o que ele não tinha percebido, e nem seus críticos, é que não podemos aumentar a produção de alimentos (e de outros bens de consumo) indefinidamente. Os recursos multiplos dos quais dependemos são limitados, não importa quão genial seja cada geração. E mesmo que sejam acessados novos recursos intocados (em outros planetas ou outras fontes de energia), quanto tempo levaríamos para acabar com eles também? A resposta é estarrecedora:


Ultimamente vi duas coisas na mídia sobre o assunto. A primeira foi o "Dossiê Demografia: O futuro da população mundial", na revista Le Monde Diplomatique Brasil, nº 48. Nele a questão é encarada do modo ortodoxo e acrítico, afirmando que tal crescimento se trata apenas de uma transição demográfica, e iremos estacionar nossa população ao redor de 7 bilhões e viver bem com isso, em nossos belos e maravilhosos paises desenvolvidos. Isto é um mascaramento do problema, já que a diminuição da taxa de natalidade dos paises desenvolvidos depende do aumento do nível de consumo indivídual (a níveis estrondosos). Também é um problema de escala, porque considera que o crescimento anômalo humano começou apenas à 200 anos atrás, quando na verdade ele começou à 10 mil anos atrás, com o início do período neolítico (que as vezes é chamado de revolução neolítica, mas eu prefiro trazer o termo ditadura neolítica, que passa uma imagem melhor). E, olhando de 10 mil anos para cá, não há ainda nenhum indício de que o crescimento irá de fato parar. Os últimos 200 anos representam apenas os últimos minutos do experimento das bactérias do exemplo acima.

Sim, é muito reducionista nos comparar e comparar nossas complexas vidas e mortes com bactérias. O problema é que, infelizmente, é exatamente este comportamento ecológico que nossa cultura se esforça duramente para igualar. E isso tem a ver com outra afirmação de um dos artigos do Le Monde Diplomatique, "Mitos da população mundial". O autor renega toda discussão preocupada com o crescimento populacional como sendo preocupações cíclicas herdadas por nossa cultura, algo que vêm se repetindo na nossa história cultural a muito tempo (já alguns filósofos gregos estavam preocupados com a questão demográfica, por exemplo) e usa isso para desqualificar tanto as preocupações atuais quanto as antigas. O crescimento em si fica inquestionado, mas deve ser questionado. Não somos bactérias, não temos porque crescer como elas. Temos que parar a insanidade que pensa que este crescimento é normal e esperado.

Mas ele está parcialmente correto: sim, é uma questão cultural. Está errado em afirmar que, por isso, a questão demográfica não seja procupante. Diversas outras sociedades colapsaram por causa de seus problemas populacionais, e isso principalmente porque não se preocuparam com eles. E talvez este destino tenha sido melhor do que o que estamos construindo. Sim, nossa cultura é a questão central. Esta cultura que nasceu no início do Neolítico, com a adoção de um modo de vida desastroso, baseado na destruição de ecossistemas naturais para alimentar uma população crescendo sem qualquer responsabilidade. Esta cultura que não é a humanidade: a destruição começou à 10 mil anos atrás, enquanto a vida humana começou a 2 milhões de anos atrás. Destruição que começou a ser praticada por pouquíssimas populações, em momentos específicos.

No Brasil Pré-Cabral, estimam-se que existiam mais de 400 linguas diferentes, uma amostra da diversidade cultural do paleolítico (ou seja, antes do neolítico). O Iraque antes de 10 mil anos atrás era densamente florestado, com grandes árvores. Algumas poucas culturas, em momentos e locais diferentes do globo, começaram a destruir tudo e a matar seus vizinhos, erguendo impérios sobre frágeis plantações e com o trabalho de escravos, fossem assalariados ou não. Deste processo insano tivemos de manter governos, fazer guerras (exércitos sequer eram possíveis antes de existirem cidades), aumentar zonas de cultivo. Enfrentar doenças cada vez mais mortíferas. Surgiam também as classes sociais, e a fome, que antes era (quando muito) eventual, se tornou crônica para boa parte da população. Os problemas foram se acumulando, mas sempre houveram aqueles que negavam estes problemas, tendendo a enxergá-los como "naturais", ou sequer aceitando-os como problemas. "Basta trazer mais adubo".

O cedro, símbolo da bandeira do Líbano, e Gilgamesh, o primeiro a destruir a floresta de cedros e outras árvores da região e a deixar registro disso. O que hoje é um deserto foram vastas florestas temperadas, de árvores altas. As epopéias de Gilgamesh contam como este "semi-deus", um rei babilônico, lutou contra as "feras", os espíritos, as matas e as forças da natureza em prol de sua emergente civilização. Fonte das imagens: Wikipedia.

Este modo de vida é uma aberração. Não é normal, não é durável, e não é bom para ninguém. Pelo contrário, antes dele nós vivemos em outros modos de vida, que por dois milhões de anos construiram nossos corpos e nossas mentes, e nos quais vivemos bem e felizes, como a antropologia e a paleoantropologia têm mostrado, e como muitos povos tribais têm alegado em vão aos civilizados. Não abandonamos os modos antigos porque "finalmente" criamos alguma tecnologia que tinhamos tanta necessidade, "para matar a fome". Mesmo os povos primitivos mais simples hoje atestam que não lhes faltam tecnologias para resolver seus problemas. Aliás, enquanto a mentalidade da civilização não lhes adoece as mentes, não lhes faltam nada. O que mudou foi nosso jeito de nos vermos no mundo. Passamos a nos ver como donos, e a justificar e valorizar a cobiça. E não há modo possivel, nem desejável, de tornar esta postura sustentável.

Mas eu falei sobre dois eventos midiáticos sobre o assunto. O segundo é algo muito menos inteligente e respeitoso do que o Le Monde Diplomatique (revista, aliás, que eu considero muito boa, apesar destas críticas pontuais). Deixo para um amigo meu completar a crítica com seus desenhos sagazes: http://tirasnao.blogspot.com/2011/06/os-idiotas.html. Um grande exemplo de como estamos desconectados da realidade do mundo, e cegos sobre a fragilidade humana. Um grande problema, sendo visto como algo "bom", ou mesmo como solução. Uma ofensa a quem assiste. Com certeza foi a pior peça publicitária que vi em toda minha vida. Como diz o Eduardo Marinho, "publicidade é uma coisa tóxica".

Algumas leituras e vídeos complementares sobre o assunto (bastante sintéticos):

Marshall Sahlins; "A primeira sociedade da Afluência" (texto)

Daniel Quinn - "As formas de cozinhar uma rã" (texto)

Janos Biro - A curva J (texto)

Daniel Quinn sobre a fome mundial (vídeo)

Daniel Quinn "Onde nós erramos" (vídeo)

Corrida da Comida (vídeo)

(Em breve trarei uma seleção inteira de vídeos curtos e úteis para repassar facilmente algumas das mensagens do blog, coisa que estou devendo faz tempo...)

Referências:
- Hern, Warren M.. Urban Malignancy: Similarity in the Fractal Dimensions of Urban Morphology and Malignant Neoplasms. International Journal of Anthropology Vol. 23, n. 1-2 (1-19), 2008.
- Palmer, Douglas. Seven Million Years: The Story of Human Evolution. Phoenix Press, 2006
- Lewin, Roger. Evolução humana. Atheneu Editora, 1999.
- Foley, Robert. Apenas mais uma espécie única – padrões da ecologia evolutiva humana. EdUSP, 1993.
- Morgan, Elaine. The Naked Darwinist. Eildon Press, 2008.
- Quinn, Daniel. Ismael, A história de B, e Meu Ismael. Diversas editoras, 1992, 1996, e 1997, respectivamente.
- Sahlins, Marshall. Stone Age Economics (ou Economia da Idade da Pedra). Diversas edições, 1972.
- Mazoyer, Marcel & Roudart, Laurence. História das agriculturas do mundo - do neolítico à crise contemporânea. Editora UNESP, 2008.
- Jensen, Derrick. Endgame Volumes 1 & 2. Seven Stories Press. 2006.

8 comentários:

  1. Muito bom, Felipe!

    Eu concordo com seus argumentos de que a postura da nossa sociedade frente a isso não é justificavel (e nem mesmo desejável).

    Foi bem interessante tocar neste assunto (que afinal é uma grande questão e já está aí há um bom tempo). Agora verei os vídeos indicados.

    E valeu mesmo pelo link para o 'Tiras Não' (e pelo elogio haha).

    Parabéns e
    Abraços!

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  2. Ah, sim... como é um assunto meio complexo e que dá margem a várias interpretações e que vai de encontro a tantos outros assuntos, penso que talvez valha a pena retornar ao tema mais algumas vezes.
    Pense nisso futuramente; eu gostaria de ler mais a respeito.

    Abraço de novo!

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  3. Obrigado Thales e Ludson,

    Sim, com certeza vou voltar à esse assunto muitas e muitas vezes. Na minha cabeça esse assunto está sempre presente, embora na maioria das vezes eu tenha só me referido de forma indireta. Muito do que eu falei em outras postagens como "Questão de Escala" ou outras do marcador 'primitivismo' têm especialmente esta questão em mente. Que também não é um assunto que vai se exaurir facilmente!

    Abraço!

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  4. Felipe tens que ler muito para emitir uma opinião desta natureza, pois quando falas, que esta super populoso o planeta, queres dizer que tem que morrer muita gente, e por um acaso será você quem vai decidir isso quem vai ou quem fica? se acha que tem muita gente por que então tu não toma uma atitude e some do mapa com os que concordam contigo.- sabes qual é população mundial? provavelmente sim. Você sabe que pode pegar toda (toda) a população mundial e colocar na Austrália ( toda só na Austrália) dar para cada um 5000m2 e a inda sobra mais da metade da Austrália vazia. Já fez esta conta? você esta sofrendo de lavagem cerebral, tens que ler muito, e coisas boas e não estas porcaria que lê. você esta ajudando a condenar a humanidade por uma situação falsa. a não ser que voce seja um dos que acredita nas Pedras da Georgia ( http://www.youtube.com/watch?v=fbUWCnsidD0) pois inclusive já existem 5 milhões de caixões ( para 4 pessoas cada um )http://www.youtube.com/watch?v=JwEm3ORm87k para vôce ajudar a escolher quem vai e quem fica, Boa sorte pra vc,

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  5. Sr. Anônimo,

    Adorei a piada. Não preciso responder né?

    E sinto muito, mas se você realmente quer que eu te responda, seja mais educado e se expresse melhor. E se não gosta de ler, pelo menos leia o que eu disse.

    Aliás...
    5000m2 = um quadrilátero de 100 por 50. O quarteirão da sua casa tem 100 por 100, ou seja, 10000m2, que é apenas um hectare. Tente viver com o que você consegue plantar nisso ai. Se morrer de fome, não vá dizer que fui eu "quem escolheu".

    :D

    Bele? Só não vou tirar seu comentário porque mais gente vai dar risada também.

    Obrigado

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  6. Bien...
    Gostei bastante do post.
    Aliás, fiz um link para esse post lá do meu blog, o Gente chimarrona.
    (Acho que tinha esquecido de avisar (e fiz em 27 de fevereiro!), mas foi sem querer ofender o copirráite, tudo bem?)
    Abraço,
    Rui.

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  7. Ahhh, sem problemas Rui, pode linkar/copiar/repostar sempre que quiser. Tudo aqui é autonomamente copyleft.

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