quarta-feira, 6 de julho de 2011

Sentimento de Pertencimento

De todos os males que passamos a gerar, enquanto sociedade e cultura, existe um que não têm recebido muita atenção. Isto talvez se deva por sua solução ser irreconciliável com nossa atual maneira de ver e viver a vida. Este mal é também, a meu ver, o pior de todos, ainda que muitos possam resolver simplesmente ignorá-lo. Me refiro à perda de um sentimento, o sentimento de pertencimento. O próprio conceito talvez já soe estranho para alguns leitores - e não deixa de ser estranho para mim, que só pude percebê-lo em momentos breves, mas mesmo assim profundamente. Tento aqui trazer meu relato, como o de um pescador que volta para avisar os ribeirinhos que o peixe do mar está acabando...


Primeiro de tudo, se trata de uma emoção, não de uma idéia. A idéia de pertencimento, pertencer a um grupo, é bem comum. Sempre podemos nos identificar com algo, ou nos entendermos como parte de algo, mental e ideologicamente. Isto é bom, dependendo com o que estamos nos identificando, mas não é tudo. Para que possamos ir além da idéia e chegar até a emoção, certas coisas precisam acontecer conosco, ou certas condições precisam existir no ambiente, da mesma forma que para ir do desgosto por alguém para a raiva por este alguém, existem certas condições que nos levam a sentir raiva, e não basta apenas pensar nela ou desejá-la.

Enquanto que idéias podem nos mover, ou melhor, podemos decidir nos mover por alguma idéia, uma emoção é sempre muito mais forte que isso: toda emoção nos move, invariavelmente. Quando muito, tentamos guardá-las e ignorá-las, mas elas continuarão nos movendo, e, em última instância, nos adoecendo, a menos que possamos trabalhá-las, expô-las, ou sublimá-las. Boa parte da psicanálise atual se baseia nisso.

A alegria nos leva a sorrir e a rir, o amor ao beijo e ao abraço, a raiva aos chutes e pontapés, e a tristeza ao choro (cito alguns exemplos entre muitas outras coisas, claro). O sentimento de pertencimento, que nem mesmo têm um bom nome próprio, carece de estudo, mas mesmo assim é claro que também nos dirige à certas ações. Leva pessoas a costurarem suas vidas juntas, compartilhando seu presente e principalmente contando com seu futuro junto àqueles para com quem possuem este sentimento. E leva pessoas a se recusarem a se distanciarem umas das outras também. Conceitos estranhos ao mundo moderno, talvez. Não é a toa que está se tornando um sentimento raro.

É dificil escrever sobre um sentimento. Para tal tarefa foi inventada a poesia. Portanto, se falho ao decidir não retratar este sentimento, me perdoem. Peço apenas que busquem sentí-lo, ou, àqueles que já o sentem, que o percebam e falem sobre ele, para que eu possa parecer menos maluco. Para isso, vou dar alguns palpites pessoais sobre aquilo que penso ser necessário para que este sentimento aflore.

O mais crucial, claro, é participar de um grupo que viva junto, compartilhando várias atividades e muito tempo junto. Este grupo é composto por pessoas de carne e osso, próximas, não por grandes coletivos distantes, como a torcida de um time, um país, ou uma união sindical. Estas pessoas têm que ser capazes de se conhecerem, se compreenderem, e gostarem umas das outras, profundamente. De modo que passam a desejar que o tempo que passam juntas seja o tempo de suas vidas. Se forem pessoas demais no grupo, isto se torna inviável. Além disso, a presença de grandes adensamentos populacionais dificultam a situação, porque tendem a superficializar as relações (mais relações, menos tempo para cada uma).

E é necessário que exista comunhão de idéias. Isto não é dizer que todos devem pensar igual. Porém as cabeças devem poder se harmonizar umas com as outras, e não entrar em conflito a todo o tempo. Infelizmente, nem toda pluralidade de pensamente é capaz de se conjugar em harmonia nesse nível. Por outro lado, a monotonia de pensamento também inviabiliza o sentimento de pertencimento, pois se não existe a diferenciação das mentes, não há porque uma mente se expressar para as outras, que é quando o respeito e a compreensão do grupo pode se manifestar e o sentimento de pertencimento reverberar naquele que se expõe.

Por fim, existe a questão da decisão mútua pela manutenção daquela vida coletiva. Sem que as pessoas possam optar por se manterem unidas (e sem que elas de fato façam isso) o coletivo enfraquece e morre. Elas necessitam assumir aquela vida coletiva como a própria expressão da vida delas, e isto não implica necessariamente em nenhum "sacrifício", no mal sentido. No extremo oposto está a decisão individualista, que prima por objetivos individuais e não considera a vida coletiva. Quem opta por este caminho "sacrifica" muito mais, e aqui me lembro da célebre frase: "O essencial é invisível aos olhos".

A vida moderna (ou pós-moderna) nos cegou para esta percepção, e é incapaz sequer de conceber tomadas de decisões não individualistas (por exemplo, por mais que namorados jurem ficar juntos, a opção de afastamento devido a um emprego é sempre válidada). Antes dela, foi a invenção da propriedade privada e do dinheiro (bases da economia atual) que permitiu que decisões individualistas pudessem se sair melhor (através do lucro individual) do que as decisões pelo coletivo. E, na base do processo, o surgimento das primeiras civilizações ruiu com as culturas tribais a ponto de permitir que decisões individualistas fossem primeiramente pensadas.

Antes desta bagunça toda, a interdependência entre todos os indivíduos do grupo era tão óbvia (para a maiora das culturas primitivas), que o individualismo, se existia, não era em nada parecido com o que vemos hoje cotidianamente, na guerra de "todos contra todos" que com isso foi criada. Isso não se equivale a dizer que os "selvagens" eram "bons". Podiam ser, e de fato alguns poucos eram, tão "egoístas" e "maus" quanto nós. Porém seu egoísmo não transcendia as exigências da vida comunal (tal era impossível), e não era uma ação para "se dar bem" (porque seria um fracasso). Era uma subversão a regra, talvez prazerosa apenas por ser subversiva. No máximo, nos piores dos casos, a coletividade lesada tinha condições de responder à altura, pois se o selvagem não era "bom", a organização coletiva era boa e forte, e mantinha as relações saudáveis pelo bem de todos.

Dito de outra forma, o domínio das relações sociais pelas relações econômicas levou ao "progresso econômico", mas também, ao meu ver, às epidemias de depressão, suicídio, e criminalidade. Seremos capazes de, hoje, passar a guiar nossas vidas não pelo que o dinheiro pede (ou exige), mas pelo que fará nossas amizades se manterem, nossas famílias se unirem, e nossos amores não se acabarem? Teremos tempo, e vida, uns para os outros? Aboliremos televisores, computadores, telefones e tudo mais pelo desejo de estarmos verdadeiramente ao lado de quem gostamos? Sequer ainda gostamos de alguém, depois de tudo isso?

12 comentários:

  1. Felipe, abaixo a definição de pertencimento que tirei di dicionario de Direitos Humanos da ESMPU (Escola Superior do Ministerio Publico da União). Não conhecia este termo nem tampouco a existencia desta escola. Achei bastante interessante. E parabéns pelo seu blog, bastante interessante.

    Tentei postar mas não consegui pois excede o número máximo de caracteres. Veja a definição no endereço: http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Pertencimento

    Douglas GG

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  2. Gostei!!! =) Acho que muitos, ou todos, deveríamos ler isso ao menos uma vez por mês e repensar certas escolhas e atitudes...

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  3. A respeito do tema "pertencimento", eu indico a leitura de "O Tempo das Tribos - O declínio do individualismo nas sociedades de massa", do sociólogo francês Michel Maffesoli.

    Parabéns pelo texto. É uma questão que merece ser pensada e repensada sem pretensões apressadas de conclusões.

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  4. Olá pessoal! Que bom que gostaram do texto e do blog. Os que não conheciam ainda, bem vindos!

    Douglas, li o texto que você passou, muito bom, principalmente por trazer a questão jurídica, e a questão das comunidades tradicionais. Meu texto entou mais na questão vivêncial e emocional (não deixou de ser uma forma de "desabafo"), e penso que complementa a questão.

    Dwayne, obrigado pela referência, parece muito interessante, vou procurar. Já pensava em uma futura postagem sobre o individualismo, e vai vir muito bem a calhar. Como disse, esta postagem foi uma prosa sobre uma emoção (o que é pouco comum), e espero não inspirar conclusões mesmo, até por conta disso. Compartilhei um pouco de algo que vivênciei, e talvez inspire alguém a vivenciar e perceber isso também em sua vida.

    Ah propósito, nesta postagem toquei de leve e jocosamente na questão dos mitos rousseaunianos e hobbesianos ("bom selvagem" e a "guerra de todos contra todos"), mas também pretendo voltar a eles, que merecem maior atenção.

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  5. A tempo: geralmente o termo "sentimento de pertencimento" é associado com o sentimento de uma comunidade com relação ao seu território. No meu texto eu associei o termo com o sentimennto que os membros de uma comunidade podem ter uns com os outros, que foi o que pude vivenciar e falar sobre. Uma coisa nao exclui a outra, claro.

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  6. Felipe,

    Por coincidência ou não, a Dwayne citou um texto sobre o qual eu escrevi: "O Tempo das Tribos - O declínio do individualismo nas sociedades de massa", do Michel Maffesoli. http://umanovacultura.blogspot.com/2011/05/o-neo-tribalismo-e-critica-civilizacao.html

    Maffesoli é um pós-moderno, e isso indica que a civilização já está trabalhando para assimilar o sentimento de pertencimento. A onda agora é organizar grupos de trabalho em empresas no formato de "coletivos", por exemplo, incentivando colegas a uma relação mais íntima entre si, o que é uma distorção do que você descreveu aqui.

    Por outro lado isso indica que suas preocupações estão bem focalizadas. Gostei muito, acho que é muito importante trazer essa questão à tona.

    Abraço

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  7. Olá Janos,

    eu tinha lido este seu texto já, mas não tinha notado que a referência era mesma.

    O ponto que você levantou é importante. Mas eu acho que este sentimento já vêm tentado ser assimilado até a mais tempo, por exemplo através das ideologias nacionalistas, onde se procura criar um laço forte com a identidade patriótica.

    Eu acho que isto vai continuar um ponto em aberto na vida civilizada, porque penso que ela é capaz de criar diversos padrões de identificação, mas criar sentimentos não é tão fácil. As condições para um sentimento surgir estando ausentes, ele não vai surgir ou se manter facilmente.

    No caso das empresas, é uma tentativa de cooperatividade dentro de um ambiente de competição. Além disso, é pouco espontâneo e dirigido, e os membros do coletivo têm pouca voz na determinação dos caminhos do "próprio" grupo (as ordens vêm dos superiores).

    --

    Acho que vale a pena deixar claro também que este sentimento de que falei não é a mesma coisa que o sentimento de amizade. Pode-se sentir amizade por uma pessoa em particular, mas o pertencimento não é voltado para pessoas particulares, mas por uma vivência coletiva.

    Bom, é isso ai, vamos falando.

    Abraços!

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  8. Talvez, ao invés de dizer "ela é capaz de criar diversos padrões de identificação, mas criar sentimentos não é tão fácil", eu poderia ter dito que é possível criar sentimentos "falsos", no sentido que eles são estimulados arbitrariamente. Sentimentos verdadeiros surgem espontâneamente em certas circuntâncias. Pode parecer bobagem falar em sentimentos falsos e verdadeiros, algo que não seria dificil distinguir um do outro, mas o fato é que se você já vivenciou o sentimento espontâneo, o seu imitador relativo parecerá para você algo bastante vazio.

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  9. "Enquanto que idéias podem nos mover, ou melhor, podemos decidir nos mover por alguma idéia, uma emoção é sempre muito mais forte que isso: toda emoção nos move, invariavelmente..."

    Adorei o modo como você expôs essa verdade irrefutável!

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  10. Adorei o texto... estava procurando por algo que fugisse da questão técnica, da descrição crua sobre o esta 'emoção' seu texto veio de encontro com o que procurava... Parabéns.

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